
A Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial dá continuidade ao Ciclo «Conversas em torno do PCI», com a iniciativa designada «QUINTA-FEIRA DA ESPIGA - QUINTA-FEIRA DA ASCENSÃO», no próximo dia 29 de Maio, às 18 horas.
«QUINTA-FEIRA DA ESPIGA» OU «QUINTA-FEIRA DA ASCENSÃO»
Em certas fases do ano, os velhos cultos agrários tornam-se mais visíveis. Festejos arcaicos, muito anteriores ao calendário gregoriano continuam a subsistir e a regular o quotidiano de algumas populações - sobretudo as rurais.
O sagrado constitui o elemento central da experiência religiosa ou da religiosidade: «sagrado é aquilo que é separado do profano, ou do uso comum, para servir a Deus». Ainda hoje se diz que a «espiga» colhida na Quinta-feira da Ascensão ou «Quinta-feira da Espiga» dispõe de virtude capaz de afugentar as coisas más e proporcionar a boa sorte, a fortuna, a abundância...
É sob o espírito da Primavera que se renasce, se exalta a fartura e a partilha ou que mais se anuncia ou favorecem novas uniões matrimoniais. As festas têm, por isso, início no ciclo da floração e prolongam-se pelo ciclo das colheitas, incluindo a «Quinta-feira da Espiga» ou Quinta-feira da Ascensão. Festeja-se em Maio ou em Junho, quarenta dias depois da Páscoa («Da Páscoa à Ascensão 40 dias vão!»). Popularmente, a Quinta-feira da Ascensão continua a ser chamada «Quinta-feira da Espiga». Neste período do calendário natural, as plantas ou as árvores encarnando a vida, representam a juventude, o vigor e a felicidade.
A esta re-actualização da Primavera corresponde o redobrar da energia, o retomar da vida com mais esperança e a sua transposição para múltiplos ritos primaveris.
De facto, neste «dia em que seca a raiz ao pão», independentemente das cerimónias da liturgia cristã, a prática tradicional consiste em «apanhar a espiga»: pequeno ramo de flores campestres a que se atribue eficácia simbólica - haver pão em casa todo o ano, ventura, propiciar o namoro ou favorecer a união amorosa...
Para muitos este é o «dia mais santo do ano». Um provérbio recomenda mesmo a ausência de labor: «No dia de Ascensão nem os passarinhos levam o bico ao chão», tal é a sua importância. É como se o tempo parasse, por momentos, sendo absoluta a probição do trabalho. Ao meio- dia, devem até ser suspensas todas as actividades. A sacralidade desta festa pouco tem a ver com a ascensão cristã. 1 Os rituais populares mostram persistentes preocupações agrárias e perseguem a garantia de prosperidade. O próprio culto judaico (muito anterior ao cristianismo), identifica-se bastante com esta necessidade vital, pois seguir a Lei de Moisés é ter a garantia de chuva e do bom tempo na estação devida. O bem-estar depende da harmonização das condições naturais futuras. Se em vez de chuvas houver granizos, não poderá haver boas colheitas. Os medos só podem ser superados pela observância dos ritos. A chuva e o sol, no tempo certo, foi o que Yaveh garantiu no Sinai, e é o que também está implícito nas procissões que ocorrem um pouco por todo o país. O desejo de condições favoráveis, de um tempo benfazejo, impõe e fixa a celebração anual.
Em cerca de trinta concelhos, principalmente no centro e sul do país, este dia é considerado feriado municipal. Esta figura jurídica surgiu logo nos primeiros dias a seguir à instauração da República. Um Decreto estabelecia que, para além dos cinco feriados nacionais, as municipalidades poderiam, «dentro da área dos respectivos concelhos, considerar feriado um dia por ano, escolhendo-o de entre os que representam as festas tradicionais e características do município». 2 No entanto, o Estado Novo veio a alterar o regime jurídico em 1952. Passaram a vigorar nove feriados oficiais (seis santificados pela Igreja Católica), sem que qualquer deles compreendesse o dia de Quinta-feira de Ascensão, deixando de existir os feriados municipais, e «admitindo-se apenas a subsistência de alguns, poucos, que andem ligados a verdadeiras festas tradicionais e características dos concelhos». 3 Tal possibilidade veio a ser concedida por intermédio de um novo decreto, que só veio a ser publicado em 1973, e a abranger as Câmaras Municipais de Alter do Chão, Ansião, Arraiolos, Arruda dos Vinhos, Cartaxo, Chamusca, Mafra, Marinha Grande, Mortágua e Salvaterra de Magos.4
Segundo a crença, a «espiga», para além de trigo, deve conter malmequeres, papoilas, alecrim e galhinhos de oliveira, e ser guardada em casa durante um ano. Geralmente, as espigas significam o pão farto; a oliveira, a paz, a luz, a harmonia; os malmequeres amarelos e brancos atraem a riqueza (ouro e prata); o alecrim, a saúde; e a papoila, o amor. Por isso, é o cortar da espiga, o separar da Natureza - porque se lhe atribui determinadas qualidades - que a sagra; uma rocha, uma árvore, um monte, uma fonte..., pode constituir um meio através do qual se manifesta a força do sagrado. Tais elementos tornam-se hierofanias, porque são percebidos pelo homem como transcendentes. O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen aproximou-se deste sentimento quando visitou a Serra da Arrábida: «Não poderei olvidar esses minutos em que, longe de todos, inteiramente só, partilhei dessa tranquilidade, dessa solidão no bosque. (...) Senti-me penetrado de toda a beleza da natureza, naquela atmosfera suave e quente. Era como a nave de uma igreja no mundo grandioso e estranho de Deus. Fui invadido por uma fé imensa (...) A teu lado sentes Deus respirar. No ar, nas flores, nas árvores, em tudo».5
O raminho de espiga que também faz a sua aparição nas cidades, transmite ao meio urbano um pouco deste antigo ritual agrário: «tem virtude». Sem ser benzido, o raminho é sagrado unicamente porque foi apanhado na «Quinta-feira da Espiga» ou «Quinta-feira da Ascensão», dia propício a despoletar o sagrado. Ao seu portador associa-se, por isso, a boa sorte.
Luís Marques
1 Como o Concílio de Niceia que consagra uma quinta-feira, a partir daí denominada de Ascensão, em consonância com S. Lucas (24,51) e Atos dos Apóstolos (I,1-11), ou das tentativas de aproximação às festas tradicionais, muito identificadas com os ritmos cósmicos, e que têm provocado significativas mudanças ao longo da História, designadamente as que levaram à alteração da data do começo do ano. Carlos Magno, por exemplo, adotou o primeiro de março. A partir do século XIII, por influência da Igreja, passou a ser o sábado de Aleluia. A Primeira República Francesa (1792) determinou que fosse quando o sol ultrapassasse o ponto equinocial do Outono, mas poucos anos mais tarde (1806), foi reposto o calendário gregoriano. Por seu turno, os russos e os turcos mantêm ainda o calendário juliano (47 a. C.), iniciando-o em 13 de janeiro.
2 Decreto com força de Lei de 12 de outubro de 1910, publicado um dia depois no Diário do Governo.
3 Dec. N. º 38596, de 04.01.1952.
4 Dec. N.º 262/73, de 26 de maio.
5 In Uma Visita a Portugal em 1866, Lisboa, ICLP, 1984, p. 52.
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